Erros de diagnóstico na arte e na vida: Wozzeck no consultório do Doutor

Autores

  • Mário Vieira de Carvalho

Resumo

O erro é analisado comparando estratégias de descodificação aplicáveis tanto à música como à medicina. A quarta cena (1.º acto) de Wozzeck de Alban Berg é o ponto de partida da discussão, que abrange o conflito entre diferentes cânones estéticos inclusive no plano da recepção. Com base na análise do texto e da música desta cena, o autor defende que Büchner dá vida aqui a um retrato bastante sarcástico do Doutor, enquanto representante do paradigma da ciência moderna, e que Berg criou o equivalente preciso desse retrato sarcástico na música. Assim, a única série dodecafónica da ópera, que surge justamente nesta cena, com a função de tema de passacaglia, deverá ser entendida, segundo o autor, não como um indício da convergência de Berg com a pesquisa de um novo sistema, de uma nova teoria, por Schönberg, após a ruptura com o antigo (sistema tonal), mas antes como uma caricatura cifrada dessa mesma tentativa. As palavras «Oh! meine Theorie! Oh mein Ruhm! Ich werde unsterblich! Unsterblich! Unsterblich!» [«Oh! a minha teoria! A minha fama! Serei imortal! Imortal! Imortal!»] referem-se também, portanto, à teoria do dodecafonismo serial, como se o próprio Schönberg falasse pela boca do Doutor. O regresso a um sistema pré-estabelecido (pensamento dedutivo) era visto por Berg como comportando o perigo de um novo academismo, ou seja, como um erro estético, comparável ao erro ético representado pelo Doutor e pelo seu paradigma da ciência moderna (pressupondo a dominação sobre a natureza íntima e exterior bem como do ser humano sobre o ser humano). Esta leitura, que leva em conta a crítica do iluminismo de Adorno e Horkheimer, deverá suscitar uma reavaliação das fontes primárias (e a procura de novas fontes) acerca das relações entre Berg e Schönberg durante o período de composição de Wozzeck, pois não é plausível que Berg tivesse estabelecido uma tão precisa conexão por mera coincidência - isto é, sem conhecer de antemão a pesquisa que Schönberg tinha em vista.

Biografia Autor

Mário Vieira de Carvalho

MÁRIO VIEIRA DE CARVALHO, Musicólogo, Professor Catedrático de Sociologia da Música na Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Departamento de Ciências Musicais, actualmente Vice­Reitor da mesma universidade. Fundador e Director do CESEM - Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, unidade de investigação da UNL com financiamento pluri-anual da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Membro da Direcção da Europaische Musiktheater­Akademie. Obras mais recentes: Razão e sentimento na comunicação musical, Lisboa, Relógio d'Água, 1999; Eça de Queirós e Offenbach: A ácida gargalhada de Mefistófeles, Lisboa, Colibri, 1999; Denken ist Sterben. Sozialgeschichte des Opernhauses Lissabon, Kassel, etc., Barenreiter, 1999. Em preparação: Luigi Nono. Inconformismo e Interpelação (2004); como coordenador/organizador: Expression, Truth and Authenticity: On Adorno's Theory of Music and Musical Performance.

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Publicado

2014-12-20

Como Citar

Vieira de Carvalho, M. (2014). Erros de diagnóstico na arte e na vida: Wozzeck no consultório do Doutor. Revista Portuguesa De Musicologia, 12, 177–200. Obtido de https://rpm-ns.pt/index.php/rpm/article/view/115

Edição

Secção

Artigos (revisto por pares)